O irrealismo obstinado dos que defendem a via do empobrecimento a qualquer custo – ao custo da vida dos cidadãos – é uma ofensa às pessoas. À violência de uns segue-se, inexoravelmente, a violência de outros, gerada pela revolta. Assim é quando já se perdeu tudo: o emprego, a confiança na classe política, a alegria de viver, os projectos de vida, toda a esperança, os direitos adquiridos conquistados pela luta dos muitos que no passado (nem tanto assim distante) morreram por eles. E os julgamentos que não se fizeram ainda dos crimes do Estado Novo não significam que as pessoas os tenham esquecido, e por isso, justamente, não toleram a repressão.

As pessoas vão para as manifestações gritar as palavras que indignam alguns porque já não têm nada a perder, pois os actuais governantes já lhes tiraram quase tudo: vasto pacote de direitos humanos subitamente alienados, a que necessariamente se acrescenta a perda da confiança na classe política dirigente. Despojados de toda a esperança, uns ainda choram para as câmaras de televisão (várias reportagens nos últimos tempos mostram o desespero dos portugueses que vão ficando sem maneira de viver em Portugal) mas há outros que já não choram: são esses os que vão às manifestações (sejam elas convocadas por quem forem), para se sentirem menos sozinhos nessa indignação que os leva a chamar nomes feios aos governantes que anteontem mandaram a polícia bater-lhes – para os dissuadir de participar em futuras manifestações, acreditando que aceitarão sem novos protestos essa repressão. Não aceitam, não se convençam do contrário, pois depois do 25 de Abril de 1974 os portugueses nunca mais aceitarão ser espezinhados e silenciados, malgrado os discursos que pretendem fazer deles carneirinhos piegas que tudo vão aceitando enquanto choramingam.

Retomo parte do que escrevi há dias: a execução das violentas reformas que se procuram levar a cabo por estes dias em Portugal esbarra nas pessoas, ferindo os princípios consagrados na Lei Fundamental (que naturalmente se procura também reformar), de razões mantidas inalteradas pelo pensamento humanista que ontem como hoje deve presidir aos fundamentos legais dos estados democráticos. Bem sei que a palavra humanismo anda pelas ruas da amargura, como se fosse uma afronta, ou uma velha ideologia sem razão de ser nos dias de hoje, mas seria bom que não fosse jamais esquecida, pois não temos outra para defender a generalidade das pessoas dessas outras que, movidas por obscuros e lamentáveis sonhos de poder, estão a destruir as vidas de tantos. As pessoas: eis o obstáculo que se procura (e se vai conseguindo, mas até quando?) contornar, apesar da retórica que o desmente. As pessoas cujas dificuldades as reformas cegas não observam, como se o propósito da política não fosse justamente o de fazê-lo, defendendo em nome delas compromissos que honrem a confiança por elas depositadas nos governantes aquando da sua eleição.

É o sofrimento concreto da maioria das pessoas que as junta (cada vez mais numerosas) nas manifestações, mas também a indignação perante a indiferença que os governantes dedicam aos seus protestos, perplexidade em que cabem todos os insultos capazes de equivaler à violência inédita das medidas. À violência de uns segue-se, inexoravelmente, a violência de outros, gerada pela revolta. É uma revolta nova, que muitas vezes não tem já razões corporativas, de defesa de interesses de classes profissionais específicas. Tão pouco é uma revolta organizada, no sentido em que o são os movimentos contidos dentro dos contextos sindicais e/ou partidários. É uma revolta que se dirige não já aos partidos dos actuais governantes (votados pela maioria de votantes que corresponde a uma minoria de eleitores, convém não esquecê-lo) mas às figuras de topo que os representam: Passos Coelho, Paulo Portas, Vítor Gaspar, cujas acções surjem a cada vez maior número de pessoas como o resultado de uma política que não as defende, muito pelo contrário, que impiedosamente as ataca em todas as frentes das suas vidas frágeis – e a gradual supressão dos serviços públicos e privatização das responsabilidades sociais provam-no.

De nada valem as palavras dos discursos da austeridade virtuosa para colher amanhã pois as pessoas debatem-se hoje com gravíssimos problemas de sobrevivência. Elas não vão poder pagar os impostos que o Orçamento de Estado do contentamento de Gaspar preconiza. E o irrealismo obstinado dos que defendem a via do empobrecimento a qualquer custo (ao custo da morte, como se verá quando começarem a morrer de forma visível os que não têm meios para se tratarem, entregando-se à morte como a um alívio), indiferentes à matança (i.e., a máquina de morte que representam essas medidas políticas) é uma ofensa às pessoas. “Vai ser preciso sangue”, lê-se nos cartazes empunhados pelos manifestantes mais lúcidos. E os estivadores têm repetido: “É até à morte.” Assim é quando já se perdeu tudo: o emprego, a confiança na classe política, a alegria de viver, os projectos de vida, toda a esperança, os direitos adquiridos conquistados pela luta dos muitos que no passado (nem tanto assim distante) morreram por eles. E os julgamentos que não se fizeram ainda dos crimes do Estado Novo não significam que as pessoas os tenham esquecido, e por isso, justamente, não toleram a repressão.

Criminalização do direito à manifestação
Daqui a dias os estudantes vão começar a manifestar-se contra os cortes no Ensino. A perseguição que foi feita no dia 14 de Novembro em Lisboa aos jovens (a maioria detidos em lugares distantes dos acontecimentos de S. Bento, com que muitos nada tinham a ver) constitui uma antevisão do que aí vem: o Governo de Passos Coelho vai seguramente reprimir os estudantes que se manifestem nas escolas e faculdades, sobretudo se forem numerosos e ruidosos. Em certa medida, são os jovens os seus maiores opositores, pois não têm a vivência de outra coisa que não a deste regime muito pouco democrático a cuja decadência assistem desde que nasceram. Não tenho dúvidas de que vão ser eles a realizar as grandes mudanças na sociedade – aqui como em qualquer parte do Mundo ocidental. No Québec, no Canadá, uma greve de estudantes em Março de 2012 revelou a que ponto o que parece não é. “Isto não é uma greve estudantil, é o despertar de uma sociedade”, podia ler-se num cartaz empunhado por um jovem. Nessa manifestação, os jovens insurgiram-se não só contra as propinas, mas sobretudo contra as medidas de austeridade que também no Canadá estão a causar inaudito sofrimento na população – famílias inteiras de desempregados, vítimas da privatização das responsabilidades colectivas. Mais de 200.000 estudantes em Março de 2012, meio-mihão de manifestantes em Maio de 2012, naquela que foi considerada a maior manifestação de todos os tempos ocorrida em Montreal – comparável à manifestação de Lisboa no passado dia 15 de Setembro.

E no entanto, na imprensa canadiana, a generalidade dos cronistas de referência escreveu contra os jovens, considerando-os imaturos e alheados da realidade, “kids in another planet” (o good old paternalismo bafiento), como se eles não a conhecessem, a essa realidade quotidiana que não lhes oferece nem futuro nem esperança, e que justamente os levou a protestar – contra um ensino segregador (e os primeiros protestos foram contra o valor das propinas e as regras de financiamento da banca emprestadora de dinheiro aos estudantes sem meios próprios), contra um ensino dissociado do Conhecimento, afunilando-se em ofertas de formação superior condicionadas pelas necessidade dos mercados dos comércios de tudo – como se o propósito da Educação fosse gerar soldados para as multinacionais.

Como consequência dos violentos confrontos ocorridos em Montreal em Março de 2012 entre os manifestantes e a polícia, uma estranha lei emergiu, esvaziando de valor político os protestos dos estudantes, e reduzindo-os à sua expressão menos relevante, criminalizando-os. Fortemente repressiva, até mesmo as polícias foram relutantes em aceitá-la. Em traços gerais: proibição de manifestação no perímetro de proximidade das faculdades; coimas por desobediência civil podem ascender aos 35.000 dólares canadianos para os manifestantes individuais, e a 125.000 dólares canadianos para os sindicatos ou associações que violem as regras – aumentadas para o dobro para os contumazes. Foi contra o carácter repressivo dessa lei que tanta gente se manifestou em Maio de 2012 em Montreal. (Actualizado em 17.11.2012)